Um pouco por todo o continente africano percorre a ideia de que a atual crise econômica aprofundada pela pandemia da Covid-19 abre uma enorme janela de oportunidade aos países africanos para o relançamento das suas economias e novas formas de gerir a coisa pública.
Há quem, no entanto, lembra que essa retórica já fez manchetes no passado, sem que o tal “relançamento” tenha tido lugar.
A propósito do Dia de África, que se assinalara nesta segunda-feira, 25, a Voz da América em África falou com várias personalidades sobre os desafios do continente.
Carlos Lopes, antigo presidente da Comissão Econômica para África, considera que a crise vai deixar marcas, mas, com mais ou menos dificuldades, os países africanos têm condições para aprofundarem a sua industrialização.
“Ela começa na crise sanitária, embora tenhamos poucas informações ainda para conhecer todo o seu impacto, Apesar de haver razões para acreditar que em África há características únicas, seja por resiliência ou outras, o fato é que o progresso é mais lento, temos a crise econômica que vai ser mais profunda que noutras partes do mundo por um conjunto de razões e temos a crise social, com setores que não conseguem ter o seu curso normal, como as escolas”, afirma Lopes, que também aponta outras crises.
“Uma crise alimentar, que já vínhamos enfrentando, com situações em várias regiões, será agravada pela pandemia, mas creio que teremos uma certa crise política porque em muitos países vão ter confronto devido a uma certa insatisfação popular, por causa do desemprego, dos impactos sociais da crise e também porque as pessoas vão ter menos tolerância para tudo o que é falta de qualidade de governação”, antevê aquele analista natural da Guiné-Bissau.
No paradoxo da menor crise sanitária e maior crise econômica, Carlos Lopes alerta para determinados fatores que afetam os países africanos e que não serão resolvidos neste ano, “nem totalmente resolvidos no próximo ano”.
Como exemplo, diz que as matérias primas terão uma retoma gradual, “mas através de preços que têm impacto mais à frente”, como é o caso do petróleo, em que agora se compra para abril e não para outubro, com os preços em baixo por causa da pouca procura.
O também professor da Escola de Governação Pública Nélson Mandela, da Universidade de Cape Town, África do Sul, aponta, no entanto, para situações semelhantes noutras matérias primas africanas.
Neste quadro de dificuldades estão as remessas dos emigrantes que vão transferir menos para as suas famílias, que, no dizer de Lopes, “são importantes porque as remessas representam mais do que a ajuda ao desenvolvimento e acabam por ter um impacto macroeconômico”.
Frente à depreciação das moedas africanas, um cenário de fuga de capitais para a Europa e Estados Unidos é admissível, enquanto os governos africanos continuam à espera de uma sinalização de algum perdão ou alívio das dívidas dos seus respetivos países.
“As negociações começaram, mas estão a progredir lentamente”, diz Carlos Lopes, lembrando que “estamos no pico da crise na Europa e nos Estados Unidos, mas ninguém está a dar gestos de boa-vontade espetaculares”.
A África necessita mobilizar cerca de um bilhão de dólares para relançar a sua economia, na ótica do antigo presidente da Comissão Económica para África das Nações Unidas, que reconhece dificuldades em mobilizar esses fundos neste ano e em 2021.
Lopes, no entanto, lembra que, segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional, antes da Covid-19, 16 das 30 economias com melhor perfórmance eram africanas, “numa boa trajetória”.
“Todos esses países têm políticas industriais que se encontravam numa boa posição para a industrialização, processo que está afetado por esta crise, mas que não será derrotado”, aponta Carlos Lopes, para quem “a crise mostra que os países africanos quando estão em dificuldades, como no caso da indústria farmacêutica, por ficarem de fora dos abastecimentos internacionais, levou-os a reforçar a ideia de que para nos protegermos em termos de cadeia de valor temos de desenvolver a produção local”.